Fenomenologia do corpo: quando é ele a falar.
- Susana Meneses
- 4 de fev. de 2018
- 4 min de leitura
Atualizado: 8 de fev. de 2018

O meu corpo não é uma coisa que eu possuo. Merleau-Ponty (1945/1999, p. 207-208) afirma: "eu não estou diante do meu corpo, estou em meu corpo, ou antes, sou meu corpo". Eu revelo-me pelas minhas manifestações corporais. É por isso que, ao observarmos o movimento de alguém, o entendemos não como um simples movimento mecânico, mas como um gesto expressivo, que une o pensamento e a ação, a dimensão física e psíquica
O gesto nunca é só movimento de uma coisa, não é expressão apenas corporal, mas expressão de uma pessoa. É com o corpo que participamos de todas as atividades da nossa vida: do trabalho, do lazer, do sexo.
É a ação do pensamento que projeta e orienta a ação do corpo. O corpo saudável é livre de obstáculos. É mudo. A noção que temos dele transforma-se quando é ele a falar. Quando ele dói.
A dor é uma realidade bastante complexa, na medida em que se trata de um fenómeno multidimensional, que envolve vertentes biofisiológicas, psicossociais, comportamentais e morais da pessoa. No entanto, trata-se também de um fenómeno subjetivo, porque é unicamente descrita por quem a sente.
A esperança em ficar bem foi o que suportou todos os momentos mais críticos. A presença de dor constante alterou o curso das minhas rotinas diárias, assim como a relação com os outros. É uma luta perdida pedir que o outro perceba o que é viver com dor a toda a hora. Para quem gosta de nós é difícil fazê-los compreender o que é estar prisioneiro do nosso corpo e constantemente solicitá-los para nos auxiliarem numa simples ida à casa de banho.
Para quem já passou por algo semelhante a esta partilha, cuja única alternativa foi ficar de baixa, foi certamente confrontado com a convocatória para exame médico na segurança social. Ter que provar a minha incapacidade foi e continua a ser frustrante porque a dor não se vê. A mutilação de uma mama, a amputação de um membro, a gravidez, a cegueira e tantas outras doenças são identificadas pela sua conotação pesada, negativa, dolorosa e são facilmente reconhecidas por quem nos avalia. E mais triste é ouvir de um médico, após ler o relatório do seu colega com a descrição da minha incapacidade física, um lamentável comentário “isto é só muscular”, desvalorizando de imediato o meu grau de incapacidade, todas as dificuldades que ultrapassei diariamente e o sacrifício que foi chegar até ele.
Eu sou enfermeira e conheço bem o outro lado: o lado do profissional de saúde, o lado de quem nunca experienciou viver com dor crónica, afinal eu já vivi sem ela. Com experiência em urgência e emergência médica, bloco operatório e hemodiálise, lido diariamente com a dor dos outros e pelas vivências diárias tendemos a sob valorizar a dor do outro. É natural e não é vergonhoso reconhecê-lo. É sim uma aprendizagem. E apesar de ter sido da pior forma, fez-me olhar a dor de um outro jeito. Muito mais que uma pós-graduação ou mestrado na área, esta fase da minha vida tem sido o estágio no terreno, que me tem permitido ter uma visão diferente do que me rodeia. Não falo com orgulho disso, mas falo com a certeza do que não desejo experienciar de novo, num momento das nossas vidas em que a doença não nos passa pela cabeça. Tudo gira em torno da vida pessoal, social e profissional.
Numa época em que as redes sociais tomaram proporções transcendentes, o olhar na vida do outro é tido para muita gente como uma janela mal fechada. Uma janela que supõe e suscita curiosidade pela vida do outro, mas na realidade não revela nada. Apenas transparece a imagem de quem tenta espreitar por ela.
Uma simples foto publicada nas redes sociais pode gerar tanto juízo de valor. Entre conhecidos e colegas de trabalho o murmurinho malicioso e ofensivo é inevitavelmente. Doença não é sinónimo de mau aspecto, desleixo, pijama e cama.
Uma mulher jovem, que até há 16 meses era ativa e que de repente se viu de mão dada com a dor diariamente tem mais é que se sentir bonita e gostar de si. A auto-estima é sem sombra de dúvida o chavão para não quebrar nem baixar a cabeça. Essa luta diária é penosa. O amor próprio tende a diminuir com o tempo, assim como o interesse por tudo à nossa volta. O desejo de acabar com a vida aumenta quando não vemos qualquer melhoria depois de tratamentos sem conta.
O suicídio é um ato de cobardia perante a vida. E é com garra que devemos encarar os problemas e passar por cima das dificuldades, tenham eles a dimensão que tiverem.
Imaginar viver com dor crónica o resto da vida é, para quem nunca o sentiu na pele, só triste. Não, não é só triste! Para quem já passou por isso ou infelizmente ainda conjuga o verbo no presente, é como se tivesse morrido mas consciente que o corpo continua mexendo, com diferentes graus de dependência dependendo dos casos. O sofrimento não mata mas mói e caminha ao lado da derrota. Mas não foi isso que eu quis para mim. E até às últimas consequências farei o possível e o impossível para voltar a viver com qualidade de vida.
Neste percurso cruzei-me com pessoas maravilhosas que levo para a vida. Talvez sobrem dedos das mãos se as contabilizar, mas que importa o número? Percebi quem caminha ao meu lado, quem me ajuda a levantar, quem me faz soltar boas gargalhadas, quem me faz sentir bonita, quem resmunga comigo quando baixo a cabeça. Afinal, pensando bem, a dor trouxe-me uma coisa muito boa: seletividade. Para quê perder tempo com pessoas que nos querem mal?
A maior dádiva na vida é acordar todos os dias e sentir que somos sãos, que estamos em pleno com o nosso corpo: saber ouvi-lo, descodificar os sinais que ele nos dá. Que o despertador continue a ser o nosso pior inimigo, tudo o resto terá o peso que nós lhe quisermos dar.
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